Memórias de estante


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Nenhuma criança gosta de ir para a cama, não quando tem um mundo de brincadeiras para descobrir. E obviamente eu não fui excepção.
Adorava ficar a brincar até todos os gatos serem pardos. Não precisava dos brinquedos todos espalhados no chão ou da televisão no canal dos bonecos, às vezes nem de companhia precisava. Podia ficar somente no sofá a imaginar que à minha volta estavam muitas pessoas, os chamados amigos imaginários, podia ficar a ver passar os anúncios na televisão até começar a novela, para depois mudar para outro canal para mais anúncios ou podia simplesmente arranjar uma coisita qualquer para ter nas mãos. Não gostava de ir para a cama, mas também não dramatizava a situação, não fazia birras, pedia mais um pouco, insistia e persistia… mesmo que em vão.
Até que um dia comecei a gostar de ir para a cama, gostava de ouvir as histórias daqueles meus livros da estante. E gostava ainda mais de ir para a cama em casa do meu pai, porque na estante que eu lá tinha, havia a enorme colecção da Anita que, antes de ser minha, era da minha tia. As histórias eram contadas pelo pai e muito saboreadas pela filha. As traquinices e aventuras de Anita e do Pantufa, as idas à praia com os primos… todos os pormenores e imagens eram bem gravadas por mim.
Houve uma história que me chamou particularmente a atenção e sabia que se a lesse iria ser a minha preferida, mas quando abri o livro apenas caiu uma folha de lá de dentro, era a única que restava daquele livro “ A Anita vai ao Teatro”. Tinha o desenho da Anita a remexer num baú com roupas antigas, a escolher um vestido para a peça de teatro. Mesmo sobrando uma folha pedi para a lerem, e no fim, muito desanimada, perguntei porque é que não havia mais daquela historia, obtendo como resposta: “sabes, tal como as pessoas perdem cabelos com a idade, os livros também perdem folhas”. Na minha ingenuidade de criança pensei que aquele livro estava quase a morrer por já não ter folhas. Então voltei a pô-lo na estante na esperança de que os outros livros lhe emprestassem folhas.
Arranjei outro livro, que na capa dizia “Anita mamã” e tinha a imagem da Anita com um bebé ao colo. Eu já sabia ler naquela altura, mas se eu lesse não conseguia perceber a história, e eu queria mesmo percebe-la, porque a Anita era uma menina que tinha a minha idade e ainda não podia ter filhos.
Nessa noite, não pedi para ficar a brincar, fui a correr lavar os dentes e depois a correr para a cama. Até já tinha o livro fora da estante para não perder tempo a procurá-lo. Então começou a história, e quando acabou eu ri-me com aqueles típicos risos de criança. Para meu alivio a Anita não era mamã, mas tinha ficado a tomar conta do irmão mais novo dela.
Até ser grandinha e de o meu pai ter doado a colecção da Anita a um infantário, lia várias vezes as pequenas histórias, principalmente a da “ Anita mamã”. E aquele livro não envelhecia porque eu tratava-o bem e guardava-o com cuidadinho. O outro de que também gostei muito morreu quando o meu pai o deitou no lixo dando como desculpa que ele já não servia para nada. Nunca mais vi livros como aqueles, vi uns mais modernos com as mesmas histórias e imagens, mas nunca nenhum como aqueles. Aqueles eram especiais, por eles tinha passado o tempo, tinham passado as viagens e os lugares aonde a minha tia e eu os tínhamos levado, tinham passado as noites de inverno a serem lidos debaixo dos cobertos ou junto á lareira, as tardes de verão na sombra do jardim… Muitas coisas que só aqueles meus livros, daquela minha estante tinham. Muitas coisas que eu antes sabia de cor.
Agora existe a mesma colecção, um pouco mais moderna, mas que as crianças de hoje em dia não conhecem. Não é que os livros já não se vendam, mas hoje em dia se não há dragões, carros, monstros, princesas, príncipes ou fadas madrinhas, já não é história. E é pena, porque histórias daquelas são óptimas para ler, são fáceis de entender e são simples, muito simples na verdade, e continuam a ter aquela viagem no expresso para a ilha dos sonhos.
Depois de já não ouvir falar da Anita, percebi porque gostava tanto das histórias. Percebi que ao contrário de todas as histórias não se passava entre “era uma vez” e “viveram felizes para sempre”. Não eram histórias iguais a todas as outras em que já sabíamos o fim. Eram apenas as histórias da
Anita.
Maria'J

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